Entrevista com Evelio Cabrejo Parra04.05.15
Pesquisador colombiano radicado na França diz que a leitura na primeira infância é fundamental para a construção do sujeito e explica o que e como ler para crianças desde os primeiros meses de vida.
A maior companheira do ser humano, quem sabe a única capaz de acompanhá-lo por toda a vida. Essa é a definição de linguagem elaborada por Evelio Cabrejo Parra, pesquisador colombiano radicado na França, doutor em Linguística e mestre em Filosofia e Psicologia.
Quando nascemos, a voz é uma velha conhecida: a partir do quarto mês de gestação, a audição do feto passa a ser desenvolvida e ele começa a distinguir vários aspectos acústicos.
Ao ler histórias para os pequenos, damos a eles a chance de encontrarem nelas ecos de sentimentos que ainda não conseguem explicar, embora os experimentem com frequência. E assim começa para cada um de nós um mergulho num universo particular.
O mundo em que crianças e livros se encontram é o campo de investigação a que Parra, vice-diretor do Departamento de Formação e Pesquisas Linguísticas da Universidade Paris Diderot, na França, se dedica há anos. Nesta entrevista, ele discorre sobre a revolução que a literatura é capaz de fazer na vida da meninada desde os primeiros meses de vida e explica como a linguagem e o pensamento estão intimamente conectados.
Suas pesquisas abordam a importância de os bebês escutarem para a construção da linguagem e da relação deles com as pessoas que os cercam. Como é essa relação?
EVELIO CABREJO PARRA Quando estudamos os pequenos, é preciso entender as competências naturais que carregam consigo ao nascer, dentre elas, a faculdade da linguagem. O bebê vem ao mundo com uma sensibilidade muito grande à voz humana. Ao ouvir, tenta construir significados. A voz se forma assim. Eu falo, por exemplo, porque escutei os meus pais quando ainda estava no berço e comecei a roubar algumas coisas da voz deles para construir a minha própria.
Por que ler para as crianças contribui para o processo de aquisição da linguagem?
CABREJO PARRA Se o adulto fala com elas usando unicamente a linguagem cotidiana, dando ênfase a expressões como “Venha aqui”, “Pegue isso” e “Não toque ali”, estará somente dando ordens, sem deixar espaço para o processo de escutar, que não acontece nessas situações. É durante a leitura que os bebês têm a oportunidade de ouvir e esse tempo é fundamental. Eles se colocam em posição de escuta e podem construir significados à sua maneira: observam o rosto do leitor e a direção do olhar dele e vão aprendendo o que é um livro. Ao mesmo tempo, já possuem um pequeno léxico usado no dia a dia – os verbos ser e estar, por exemplo – e conseguem identificá-lo no texto lido. Descobrem, então, que algo que está neles também está na obra. Assim, começam a compreender os textos de maneira prazerosa, tomam gosto pela leitura e entendem o espaço cultural dos livros no mundo. Na primeira infância, o hábito de ler deve ser integrado às competências naturais que as crianças têm. Assim, elas constroem significados para as coisas.
Por que é importante trabalhar com diversos tipos de leitura logo na primeira infância?
CABREJO PARRA O falar cotidiano é pobre. Devemos dar aos bebês a chance de desfrutar ao máximo as possibilidades dos textos poéticos e literários. Nossa língua é uma fonte inesgotável de produção de frases e de encontro de palavras, coisas que só são descobertas pelos pequenos quando temos o hábito de ler muitas histórias para eles. A partir de então, a linguagem começa a se transformar em uma companheira para toda a vida, possivelmente a única que estará sempre à disposição para falar, escutar, sonhar, fantasiar. Por meio dela, é possível colocar dentro de si harmonias e significados diferentes, elaborando um capital psicológico que poderá ser acessado em muitos momentos. Temos dois nascimentos: um biológico e outro psíquico, e a linguagem é a matriz simbólica da construção do sujeito.
Como se dá a relação afetiva entre as crianças e as histórias?
CABREJO PARRA Os bebês fazem projeções por meio do que escutam: é assim que as obras entram em diálogo com a psique. Elas permitem que, lentamente, eles comecem a entender o que sentem, enviam ecos de questões que ainda não entendem. Na infância, sofremos com conflitos horríveis e fortes, que não entendemos e os adultos ignoram: os ciúmes são imensuráveis, a cólera é tremenda e até perigosa, e a tristeza, terrível. Embora essas sensações estejam incorporadas quando temos pouca idade, elas ainda não estão centradas culturalmente. Então, não temos como pensar nelas.
Que características as obras devem ter para proporcionar esse laço de afetividade?
CABREJO PARRA Os bons livros para bebês são aqueles que falam com eles, e não sobre eles. É importante, por exemplo, que haja consonância entre a obra e o que estão vivendo. No período de ambivalência, que vai dos 4 meses ao final do primeiro ano, os pequenos tendem a ter um comportamento nervoso. Nesses momentos, podem ser lidas histórias que falem da questão por meio de metáforas. Assim, eles encontrarão uma representação de sua própria vida interior. O texto vai ajudá-los a se sentir compreendidos. Outra recomendação é não trabalhar com obras muito simples. Melhor optar por aquelas bem construídas, que não se deixam interpretar definitivamente e podem ser retomadas sempre que se quiser viajar de um jeito diferente.
Na escola, como organizar uma seleção de obras para ler para a turma?
CABREJO PARRA Não é interessante escolher os livros apenas se baseando em critérios adultos. O ideal é deixar que os pequenos também decidam. Por volta de 1 ano, eles mesmos já são capazes de eleger os livros que lhes interessam, primeiramente observando as cores da capa e outras características que mais chamam a atenção e, em segundo lugar, considerando a história em si. Sugiro ao professor a seguinte experiência: organizar uma seleção de bons títulos, colocar todos apoiados em uma parede, em frente ao grupo, e explicar que vai contar a história que cada um escolher. No fim de um programa de leitura estruturado, de três ou quatro semanas, é possível ver cada um segurando um livro, esperando que a história seja lida em sala.
Muitas crianças querem ouvir sempre a mesma história. Isso é um problema?
CABREJO PARRA Não. Quando elas gostam de um texto, é comum pedirem que ele seja lido um número incontável de vezes. Saber por que essa identificação ocorre é difícil, mas o mais importante é compreender e considerar que os pequenos necessitam encontrar novamente algo que está dentro de si e imaginá-lo por uma vez mais. É um processo de internalização.
Que atitudes um adulto deve ter ao ler uma história?
CABREJO PARRA A primeira coisa é ter disponibilidade para amar as obras destinadadas às crianças. Isso pode parecer um pouco romântico, no entanto, durante a leitura de um adulto para uma criança, é preciso haver cumplicidade. Se você não gostar da história lida, não adianta nada. As pessoas generosas são capazes de fazer uma espécie de regressão: permitem que o bebê que foram um dia no passado fale com o outro que está ali diante delas. Isso torna o contato mais profundo entre eles. Também é importante não atormentá-los fornecendo um resumo do texto logo no princípio ou explicar palavra por palavra lida. Se a criança comenta a leitura, é interessante que o leitor faça uma festa, comemore, para que ela se dê conta de que está sendo ouvida de verdade.
Por que é interessante os pequenos manusearem os livros mesmo havendo o risco de rasgá-los?
CABREJO PARRA Os bebês buscam as obras para tentar lê-las, e não para destruí-las. Eles se interessam ao ver os adultos folheando-as e querem imitar. Os que têm pouca ou nenhuma experiência nessa tarefa rasgam alguns exemplares ou os colocam na boca por não saberem manuseá-los. Apesar disso, aos poucos, podem se transformar em pessoas que vão utilizar gestos compatíveis com o comportamento leitor. O livro é um objeto que necessita do contato com o ser humano para se transformar em um objeto de cultura. Ao mesmo tempo, uma das funções da leitura na primeira infância é permitir que o bebê ultrapasse o sujeito físico e alcance o cultural.
O que acontece quando as crianças chegam à escola sem antes terem tido algum contato com a leitura?
CABREJO PARRA Se nunca pegaram um livro nas mãos nem viram um exemplar em casa, elas simplesmente não sabem do que se trata nem como aquilo deve ser usado, para que serve. Ao tentar abri-lo, é comum o educador dizer “Não é assim” e “Não faça isso” por várias vezes. O pequeno percebe, então, que vários colegas sabem o que fazer com o objeto, e ele não. Com esse cenário, o livro pode começar a se transformar em alvo de humilhação e angústia, e ele acaba preferindo fechá-lo. Isso é muito grave porque esses são os meninos e as meninas que muitas vezes acabam abandonando a escola sem aprender a ler e escrever.
Como evitar problemas como esse e fomentar a leitura desde cedo?
CABREJO PARRA O caso da Colômbia, por exemplo, é muito interessante. O governo tem dado prioridade à primeira infância, o correspondente aos quatro primeiros anos da vida escolar, e dedica bastante foco à leitura. Acredito que deveria haver um movimento como esse em todos os países. Isso ajudaria a criar um espaço para os bebês nas bibliotecas públicas, algo muito importante, por exemplo, para as famílias que não dispõem de condições financeiras para comprar livros.
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